A duvidosa ética dos ‘marineiros’
especialistas em Defesa Nacional
Roberto Lopes
Exclusivo para DefesaNet
O programa de governo da campanha do PSB à Presidência da República – intitulado “Plano de Ação para Mudar o Brasil” – tem 241 páginas, mas só quatro breves parágrafos (à pág. 37) sobre Defesa Nacional. Eles dizem:
“Defesa nacional: fortalecimento e modernização das Forças Armadas; proteção de nossas fronteiras contra a biopirataria, o tráfico e o contrabando.
A coligação Unidos pelo Brasil vai fortalecer e modernizar as Forças Armadas para o cumprimento de sua missão constitucional de defesa da pátria, de garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da manutenção da lei e da ordem.
Em sua missão de defender a pátria, as Forças Armadas devem incorporar a missão de proteção do meio ambiente – particularmente da biodiversidade contra a biopirataria – e do policiamento das fronteiras para o combate ao contrabando e ao tráfico de drogas, de armas e de pessoas.
Temos um compromisso também com a adequação dos efetivos do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, com o aprimoramento da capacidade operacional das três forças e com a elevação de seu nível tecnológico.
Além disso devemos avançar cada vez mais na área de ciência e tecnologia voltada para a defesa da nossa soberania, inclusive buscando preservar os dados digitais do país e de seus cidadãos como instrumento de defesa nacional”.
O texto inova pouco em relação ao programa militar que a candidatura de Marina Silva apresentou em 2010.
Uma comparação entre as diretrizes para a Defesa Nacional formuladas para a atual campanha e as de quatro anos atrás, permite, entretanto, algumas observações:
1º – O “Plano de Ação” de 2014 ressalta a necessidade de as Forças Armadas incorporarem “a missão de proteção do meio ambiente – particularmente da biodiversidade contra a biopirataria”. Em 2010 essa mesma convicção foi explicitada de forma mais incisiva: a proteção ao meio ambiente seria elevada à condição de “prioridade” do Ministério da Defesa;
2º – A atual campanha de Marina reproduz um segundo objetivo já existente em 2010: “Temos um compromisso também com a adequação dos efetivos do Exército, da Marinha e da Aeronáutica”. Mas em nenhuma dessas oportunidades fica claro o que a candidata – ou os “marineiros” – querem dizer com essa “adequação”. A questão do aumento em curso dos efetivos militares é séria. Ela representa uma estratégia que tende a acentuar a já conhecida incapacidade de o Estado sustentar o funcionamento de seu aparato militar. A campanha de Marina pretende o quê com a propalada “adequação dos efetivos do Exército, Marinha e Aeronáutica”? Estimular ainda mais essa expansão? Restringí-la? Reservar maiores recursos para bancar esse crescimento? O mais provável é que nem a candidata, nem os seus assessores, tenham ideia do que fazer com tal “compromisso”.
3º – Apenas no último parágrafo do “Plano” de 2014 é que surge uma novidade em relação ao programa militar de 2010: “avançar (…) na área de ciência e tecnologia voltada para a defesa da nossa soberania, inclusive buscando preservar os dados digitais do país e de seus cidadãos como instrumento de defesa nacional” – alusão à necessidade de se capacitar o país para a guerra cibernética, prevenindo, dessa forma, a espionagem estrangeira dos assuntos do governo e de entidades a ele vinculadas (como a Petrobras).
4º – Finalmente, é preciso assinalar que os quatro parágrafos de 2014 omitem uma importante preocupação manifestada pelos “marineiros” de 2010: a da necessidade de se proteger os recursos marítimos nacionais – inclusive os de caráter mineral, promissores mas ainda pouco dimensionados, que jazem no leito submarino.
Nada disso, contudo, é tão importante, quanto o fato de que os quatro parágrafos sobre Defesa Nacional apresentados no “Plano de Ação” deste ano nada, absolutamente, têm a ver com os planos do embaixador aposentado – e ex-ministro da Defesa do governo Lula – José Viegas Filho, pessoa que se impôs a tarefa de traçar as diretrizes programáticas da campanha do PSB para a área militar.
Afastado do país por longos nove anos – período em que comandou as embaixadas brasileiras em Madri e Roma – Viegas, em março, preparou um e-mail para diversos simpatizantes e apoiadores do então presidenciável do PSB, Eduardo Campos, denotando seu despreparo para a coordenação do programa militar.
Nessa mensagem ele definia a assistência médica às comunidades ribeirinhas da Amazônia como uma das “prioridades” a serem atribuídas à Marinha do Brasil, o que provocou discretas ironias por parte dos almirantes inteirados do fato. Viegas também omitiu a disposição do PSB de elevar a proteção dos ecossistemas e recursos marítimos do país ao rol de prioridades do Ministério da Defesa – ponto basilar do programa de Marina Silva em 2010.
Mais tarde, alertado por um correligionário de Eduardo Campos, o ex-ministro da Defesa incluiu, apressadamente, entre as suas “diretrizes”, um item que comprometia o ex-governador pernambucano com a reposição dos R$ 3,61 bilhões destinados à manutenção de programas já contratados pelo Ministério da Defesa junto às empresas da indústria nacional. A verba foi deletada no primeiro trimestre do ano, no bojo de um drástico corte orçamentário ditado pelo Ministério da Fazenda e homologado por Dilma Roussef.
Oferecimento
Foi em fevereiro passado que o dublê de diplomata e ex-ministro ofereceu-se ao então vice-presidente do PSB, Roberto Amaral, e ao 1º Secretário do partido, Carlos Siqueira, para redigir um rol de prioridades para as Forças Armadas.
Amaral e Siqueira aceitaram o oferecimento durante uma visita que fizeram ao apartamento de Viegas, no bairro carioca do Flamengo. Tinham ido lá levar uma papelada sobre o que o partido pensava em termos programáticos para a política externa, já que, originalmente, o diplomata iria se concentrar em teses programáticas para a área das relações externas.
Antes dessa conversa, José Viegas havia se avistado com o candidato do PSB, Eduardo Campos, apenas duas vezes – ambas no segundo semestre de 2013. Em nenhum desses encontros o tema Forças Armadas esteve em pauta.
Viegas conversou com o presidenciável pernambucano sobre o relacionamento internacional do Brasil, previu uma onda de forte desordem nas ruas por ocasião da Copa do Mundo (que não iria acontecer na intensidade que ele esperava) e disse a Campos que tinha amigos capazes de assessorá-lo em mobilidade urbana. Sobre Defesa Nacional, nem uma palavra.
Então, no início de 2014, José Viegas se dispõe a preparar o programa militar da candidatura Campos, enquanto coloca em ação um plano pessoal paralelo: trabalhar na venda de equipamentos militares estrangeiros ao Ministério da Defesa, em Brasília.
O assunto foi desvendado pelo jornal “Correio Braziliense”, no dia 6 de abril.
Nessa data, uma colunista política do principal diário do Distrito Federal informou que o embaixador montara uma equipe de lobby para vender armamentos, constituída por dois generais da reserva, pelo ex-chefe do Estado-Maior da Aeronáutica, brigadeiro Aprígio Azevedo, e pelo almirante Silvio Meira Starling, irmão da ex-ministra interina do Trabalho do governo Lula, Sandra Starling, uma das fundadoras do Partido dos Trabalhadores.
YAK-130
O projeto pessoal de converter-se em mercador de armas, pareceu a José Viegas Filho tão natural e corriqueiro, que o diplomata não hesitou em confidenciá-lo ao então chefe do Estado-Maior do Exército, general Joaquim Silva e Luna, que se preparava para deixar o cargo (e transferir-se para o Ministério da Defesa). Mas o “Correio” fez constar: a nova área de atuação profissional do ex-ministro era vista com “cautela” na área militar do governo Dilma. Até porque o ex-ministro não constituía, propriamente, uma unanimidade nos quartéis. Especialmente nos da Força Terrestre.
No início de 2004 ele fora demitido do governo, depois de criticar uma nota preparada pelo Serviço de Comunicação Social do Exército que, em sua opinião, fazia apologia do Regime Militar instalado pelo golpe de 31 de março de 1964.
Esquerdista convicto, no auge da crise o embaixador pediu de forma enfática ao presidente Lula que exonerasse o então comandante do Exército, general Francisco Roberto de Albuquerque: “Presidente, o senhor pode demitir o Albuquerque”, disse o então ministro da Defesa ao chefe do Governo, “não vai acontecer nada. O Exército não reagirá”. Prudente, Lula preferiu fazer precisamente o contrário, e dispensou Viegas.
“A nota divulgada no domingo 17 [pela Comunicação Social do Exército] representa a persistência de um pensamento autoritário, ligado aos remanescentes da velha e anacrônica doutrina da segurança nacional”, escreveria José Viegas num comunicado à imprensa para explicar a sua dispensa, “incompatível com a vigência plena da democracia e com o desenvolvimento do Brasil no Século XXI. Já é hora de que os representantes desse pensamento ultrapassado saiam de cena”.
A ousadia do colega teria deixado profunda impressão (positiva) na então ministra do Meio Ambiente, Marina Silva.
Prestes a completar 72 anos, Viegas, aparentemente, não vê qualquer impedimento ético na dupla ocupação de formular planos para as Forças Armadas e vender equipamentos a elas.
Tanto que, entre as prioridades que definiu para um eventual governo de Eduardo Campos incluiu, aparentemente por sugestão do brigadeiro Aprígio, a seleção de um novo jato de treinamento para os pilotos de combate da Aeronáutica – uma espécie de F-X3 de custo calculado entre US$ 800 milhões e US$ 1 bilhão (cerca de um terço do programa F-X2).
Entre as aeronaves que disputarão a preferência dos brigadeiros está o YAK-130, de fabricação russa. Moscou, sócio de Brasília no grupo dos BRICS, quer vender 18 dessas aeronaves ao Comando da Aeronáutica brasileiro.
Viegas é um fã da indústria aeronáutica russa.
Prova disso é que, ainda no segundo mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso, torceu para que a Força Aérea Brasileira renovasse a sua aviação de combate com o caça-bombardeiro SU-30 – cuja performance nos voos de teste, diga-se, encantou os pilotos da FAB (no item manobrabilidade).
Curiosamente, nem a concorrência milionária para a aquisição de jatos de treinamento, nem qualquer outro ponto elencado por José Viegas para o programa militar da campanha do PSB, apareceu no “Plano de Ação” da candidata Marina.
No caso da presidenciável do PSB alcançar a vitória, é possível, entretanto, que tais idéias sejam retomadas no período de outubro a dezembro, quando os “marineiros” especialistas em Defesa Nacional vão preparar o elenco de projetos que levarão para seus novos gabinetes, em Brasília.